Deitados os dois na cama de solteiro, ela pede, com uma palavra, pelo livro do Cocoricó. Aquele que ganhamos do William. Na verdade são três livros, com histórias que ela decorou com a presteza com que tem na memória os filmes do Rei Leão, Nemo, Backyardigans, Charlie e Lola…
Deita-se no acolchoado de gordura que fica na articulação do meu ombro quando abro os braços e a espero deitar. Aquelas histórias não começam como os clássicos, mas repetimos, olhos nos olhos e em uníssono:
— Era uma vez…
E as histórias seguem, os três livros, na sequência que ela escolhe. E aos poucos as respostas pelos nomes dos personagens demoram mais e ela aconchega a cabecinha no meu ombro, às vezes pega no meu cabelo. E, então, pede:
— Mu.
Mu é o apelido que ela deu pra mamadeira. Porque na embalagem do achocolatado tem uma vaca. E vaca é mu, não tem jeito.
Então vem quentinho o Mu, que o Word insiste em corrigir pra “Um”. Parece que não entende, que insensível. Então a luz se apaga, seguro o Mu para ela, que nem sempre aceita todos os 240 mL. Ela que sabe. Nós, adultos, que muitas vezes aceitamos algo de má vontade pra fazer tipo.
Então ela se vira, ainda fazendo minha gordurinha de almofada e abraça meu braço esquerdo. Emblemático, embora já não o levante mais, punho cerrado, com a mesma veemência. Quem dera ela entendesse, ao menos, a solidariedade pelos aflitos.
E meus dedos correm pelo cabelo ondulado, penteando-os para cima, enquanto as digitais massageiam a cabeça. E eu sinto que ela percebe a cumplicidade daquilo. E se não acalmo meus pensamentos, de adulto chato e turrão, ela não adormece. É nosso diálogo, nosso segredo.
Amanhã ela faz dois anos. E eu não sei mais o que seria de mim sem ela.
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