Crônicos & Agudos

A nova casa do conteúdo e da forma

É um orgulho ter essa audiência no blog. Uma grande conquista, antes de tudo. E é com essa felicidade que lhes apresento um novo projeto, que une os dois blogs para os quais escrevo. Agora, Francazona e Crônicos & Agudos atendem pelo nome de *Crônicas e Outras Coisas. A nova casa, além de reunir todos os textos contidos nos dois blogs, traz novidades e um visual mais aconchegante. Nada como ter o próprio domínio para ter acesso aos vários recursos disponíveis para um site.

Gostaria muito de contar com sua audiência na nova casa. Vai ser mais cômodo e tão agradável quanto. Acredite.

Abraço,

*editado em maio de 2015

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Maria, só Maria

Deitados os dois na cama de solteiro, ela pede, com uma palavra, pelo livro do Cocoricó. Aquele que ganhamos do William. Na verdade são três livros, com histórias que ela decorou com a presteza com que tem na memória os filmes do Rei Leão, Nemo, Backyardigans, Charlie e Lola…

Deita-se no acolchoado de gordura que fica na articulação do meu ombro quando abro os braços e a espero deitar. Aquelas histórias não começam como os clássicos, mas repetimos, olhos nos olhos e em uníssono:

— Era uma vez…

E as histórias seguem, os três livros, na sequência que ela escolhe. E aos poucos as respostas pelos nomes dos personagens demoram mais e ela aconchega a cabecinha no meu ombro, às vezes pega no meu cabelo. E, então, pede:

— Mu.

Mu é o apelido que ela deu pra mamadeira. Porque na embalagem do achocolatado tem uma vaca. E vaca é mu, não tem jeito.

Então vem quentinho o Mu, que o Word insiste em corrigir pra “Um”. Parece que não entende, que insensível. Então a luz se apaga, seguro o Mu para ela, que nem sempre aceita todos os 240 mL. Ela que sabe. Nós, adultos, que muitas vezes aceitamos algo de má vontade pra fazer tipo.

Então ela se vira, ainda fazendo minha gordurinha de almofada e abraça meu braço esquerdo. Emblemático, embora já não o levante mais, punho cerrado, com a mesma veemência. Quem dera ela entendesse, ao menos, a solidariedade pelos aflitos.

E meus dedos correm pelo cabelo ondulado, penteando-os para cima, enquanto as digitais massageiam a cabeça. E eu sinto que ela percebe a cumplicidade daquilo. E se não acalmo meus pensamentos, de adulto chato e turrão, ela não adormece. É nosso diálogo, nosso segredo.

Amanhã ela faz dois anos. E eu não sei mais o que seria de mim sem ela.

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Wild world web

Pro matuto, essa história de Internet era coisa de paulista. Não tinha necessidade ou interesse, então tinha desconhecimento. Até que veio o rapaz do censo.

— Mangalarga? Não, aqui nós cria Andaluz, Quarto de Milha — rebate o matuto.

O rapaz insiste com certo jogo de cintura, tenta dar a volta por outro lado e pede a opinião do roceiro sobre Internet via rede elétrica. Caso fosse positiva a resposta, poderia aprofundar no assunto.

— É gato. Aqui a força é gato dum poste que tem na estrada. Luz não chega aqui não.

Ele e mais dois que puxaram. Embrenharam no mato com o fio que compraram na cidade — mais de mil metro — e foram até a cerca que divide o conglomerado de fazendas e a estradinha de terra que liga o nada e o menos ainda. Lá tinha um poste que levava a eletricidade para a fazenda do deputado e, alheia ao mundo, passava sorrateiramente, em linha reta.

Cabearam como puderam, mas vira e mexe, quando chove, têm que andar esses quilômetros a pé pra levantar o gato. Cavalo não anda naquelas paragens. Terra seca descoberta rodeada de mato fino e muito buraco. Luz, só depois que para a chuva.

A Anatel teria que esperar mais um pouco para ver o país integrado pela rede de forma barata e socialmente responsável. Antes de conectar, era preciso ainda iluminar aqueles lares — no sentido que se usava no século 17. E no outro também.

E o matuto não sentiria falta por enquanto. Essa modernidade, afinal, cria soluções para problemas que ela mesmo traz.

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Para bom entendedor, um pingo é garoa

Ela, insegura e gostosa. Ele manjava tudo. Dava pra ver nos olhos dela que ele, barbudo, roupas propositalmente descombinadas, manjava tudo. Impostava a voz, o olhar e tripudiava na insegurança da inócua jovem — mais que ele — gostosa.

Aposto que ela se vestiu diferente para aquela ida ao teatro. Ele fazia teatro. Há uns… faz um tempão. Manjava de tudo. Contava pra ela o porque das mãos da atriz terem se movimentado freneticamente aquela hora. Era um tal de… sei que era russo.

Os olhos dela mal se moviam, vidrados naquele jeito de falar. Afinal, como podia? Ele era tão… diferente. Enquanto isso, o vagão do metrô naquela — até então inóspita — Trianon/Masp, se empanturrava com o público que outrora enchia a sala do teatro.

Sabe porque os suportes do programa e sinopse da peça permaneceram cheios durante o espetáculo? E porque esvaziaram no fim? Porque ninguém entendeu. A peça era sobre um casal que se separou; e cada um explicava seus motivos, como todo casal que tenta explicar as coisas da intimidade: cheio de digressões. Afinal, quem entende a intimidade?

George Orwell regozijava-se enquanto a avalanche descia as escadas da estação. Metade lendo, a outra só carregando o livretinho vermelho com a legítima cara de paisagem. Talvez entendessem, mas quem tinha todas as respostas era o barbudinho que fisgou a gostosa.

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Sexo na igreja, só sem camisinha

Tudo cinza na quarta-feira pós carnaval e o padre resolveu assoviar a marchinha da banda que se instalou na frente de sua paróquia. Não que não houvesse vontade de cair santamente na folia, mas como é celibatário, resolveu ajudar o Padre-nosso a não deixá-lo cair em tentação.

Fez biquinho e encheu os pulmões com a melodia involuntária que os trumpetes declamaram por quatro dias inteiros na sua janela. A clausura já não fazia bem há tempos pro padre, que acabou saindo também como deputado federal pelo PT da Paraíba. Mas isso não tem nada a ver com o Arcebispo ter entrado na igreja bem na hora do biquinho, enquanto o padre arrumava o púlpito pra missa.

— Bota a camisinha, padre? É isso que o senhor está assoviando? — trovejou o arcebispo, que despenteou as melenas esbranquiçadas.

Gaguejou no começo, o padre, mas lançou mão da apostila do Boffe e leu-lhe meia dúzia de capítulos e versículos. Que não era só a favor do Boffe, mas dos bofes e das bibas, respeitosamente argumentou o contraventor. Mas não fora suficiente, nem o seriam os recursos a que teria direito. O padre foi mesmo expulso da igreja como foi aquele outro do Holocausto — digo, que negou o Holocausto.

Triste fim da marchinha, que roda o mundo e toda a cercania da igreja — do portão pra fora — e sem pretensão maior faz a vez da redução de danos, que tanto teimam em excomungar. O padre vai continuar rezando em casa e no congresso, creio eu. E, fora da jurisdição do arcebispo, ainda pode celebrar: sem camisinha.

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Nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente e além

Rolava um boato de que o vinho era de produção caseira. Sem agrotóxico. Mas ninguém passava o limite do cochicho. Decerto todos já sabiam, mas continuavam as apresentações no palco que tinha uma janela e um piano como rotunda.

Antes, tinha conversado sobre corrupção com um amigo que encontrei. Papo de bêbado, mesmo ainda não tendo provado o tal vinho. Até então só tinha rodeado a mesa no fundo da salinha, onde ficavam os comes. No palco, do lado oposto, instalava-se um genuíno sarau e um carinha abraçava o violão como a uma dama de pele macia e pescoço cheiroso. Tinha música boa, gente fazendo arte, mas ninguém tomou a palavra pra apresentar aquele vinho da garrafa sem rótulo.

Mesmo os vinhos vira-lata têm seu prestígio. A seu modo, mas sempre tem um engraçadão que pede Chapinha, em voz alta, com sotaque francês e dispersa toda aquela atmosfera que talvez pairasse sobre a qualidade da bebida. Mas não era o caso. O garrafão imperava silencioso e anônimo, talvez sem agrotóxico, talvez feito por um modo de produção que desafiasse os paradigmas da produção em série.

E, no palco, anônimos desafiavam a arte viciada.

Enólico, declamei o meu poema e fui embora feliz de um evento sem rótulo, provavelmente sem agrotóxicos e sabendo que se quisesse mais uma taça, não encontraria no supermercado.

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A rua é pública

O mantra era entoado toda vez que a discussão não tinha mais pra onde ir. Ninguém queria fulano em seu time, no futebol de rua, então ele ficava no meio do campo pra atrapalhar e declamava em sua defesa:

— A rua é pública!

Uns articulavam melhor, outros bem pior a frase, mas aquilo era irrefutável. Não tinha um que não cedesse sob essas palavras, diga-se, mágicas. Mesmo entre os adultos, às vezes se ouvia encaixada num período um pouco mais complexo, com advérbios que as crianças não ousavam pronunciar.

Fosse na bolinha de gude, fosse no bétes, tinha sempre alguém que reivindicava pra si a urgente condição de cidadão de direito no uso do espaço público. Mas o debate, no mais das vezes, acabava em porrada mesmo. Já viu criança pedir tréplica?

Ainda hoje penso duas vezes antes de reclamar do vizinho da frente, que escolhe as tardes de sábado para arrumar o motor do carro, estacionado no meu portão. Já viu carro velho pra regular o motor? Cada acelerada comprida e profunda chega a cortar a respiração.

Já pensei em sair lá pra reclamar. A minha filha, a Maria, está, via de regra, quase dormindo quando ele começa. Eu e ela adoramos essa soneca da tarde — cada um com seu motivo —, e o cara, contumaz, adora arrumar o carro.

A vontade me leva sempre até a porta, mas parece que ouço uma voz no fundo da mente, que me repete o mantra. Hoje sei que as coisas não são bem assim, que talvez o cara nem queira discutir o espaço público. Pode ser até que eu acabe dizendo que o espaço é público e justamente por isso é que não se deve usá-lo como privado, mas…

Quem arrisca?

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A que devo meu desespero

A injeção de Plasil foi da veia para o cérebro. Não tive tempo sequer de me deitar e o corpo já obedecia a uma ordem que desconhecia. Irreconhecível. Na mente passavam cenas e preocupações, além de uma dúvida descabida: aquele bolo no estômago era mesmo por causa da virose?

O assunto não era tão complicado de explicar pro doutor. Impassível, me olhou como se eu fosse o décimo terceiro com aqueles sintomas naquele dia. Pra ser sincero, me senti meio mal, como se esperasse certa exclusividade. Um ar de surpresa que fosse, pra amenizar o psicológico.

Pois sentei pra tomar a injeção enquanto um senhor bem japonês saia da enfermaria de cadeira de rodas vestindo sunga. Apenas. As peles repuxadas das tetas aproximavam sua idade aos sessenta anos. A tosse e a cara de enxarcado delatavam o domingo etílico que o destinara ao hospital.

A confirmação do que especulava bateu à porta tão logo o senhorzinho saiu. A enfermeira com cara de mal-amada bufou antes de abrir. Recebeu um outro senhor, cabeça bem branca, também de sunga, que agradeceu-lhe efusivamente e se despediu bebadamente:

— O próssimo (sic) sou eeuu.

Devia ser alguma festa da terceira idade. Regada a vodka, mulatas e gamão. Creio que os velhos aprendam a jogar gamão tão logo se tornam velhos. Ou então preciso me arvorar nessa arte sob o risco de continuar sendo a chacota da turma. Em plena velhice.

Então a tripa de mico esmagou meu bíceps tatuado enquanto a agulha injetava o líquido espesso e transparente que, quiçá, me aliviaria. Foi a conta da pior tontura que já senti em toda minha vida. Já anotei o nome do remédio, avisei minha mãe, inclusive.

Achei, mesmo, que não fosse dar conta de um dia chegar com a galera do gamão, de sunga, no hospital pra tomar glicose.

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O vil metal com pedras e brilhantes

Minissaias acontecem. Com maior incidência no verão. Mas no verão acontecem mesmo as miniblusas, aquelas que vêm em combinação com calças de cós baixíssimo.

As noites quentes de sábado, como foi a do último final de semana, suscitam que essas coisas aconteçam com maior frequência. E ela estava na minha frente, olhando atenta para o monitor do caixa do supermercado, pensando se daria o dinheiro ou precisaria passar no crédito.

Melhor não passar no crédito. As condições de juros nos bancos não estão favoráveis, o câmbio com altas variações e, sem contar a crise de confiança do mercado internacional. Melhor que essas cervejas caibam no meu dinheiro.

Deve ter pensado mais ou menos isso. Estava apreensiva e com sorriso suspenso. Tinha um ar misterioso nos lábios de batom cor de pele. Pouca sombra e cabelos loiros cacheados.

Daria pra filmar um longa-metragem só do que mostrava de pele a distância entre a barra da blusinha e o cós da calça. E elas costumam ser assim quando acontecem: devastadoras. Não havia ética, som, crianças chorando e querendo as balas que os lojistas posicionam estrategicamente na parte inferior das gôndolas…

Nada era suficiente para demover qualquer olhar que se arcava sobre aqueles metros de pele branca e macia. Jovem. Os homens se desviavam das araras de revistas enquanto disfarçavam das respectivas companheiras; e estas olhavam julgando e medindo cada curva com suas próprias frustrações. Ela era unanimidade.

Uma voltinha para conferir se esquecia algo no carrinho, além de ver se ainda olhavam, porém, e revelava-se a sutil desgraça que meu gosto antiquado me impõe. Não há prejulgamento, não se estabelecem divisões ou estigmas. Só que não vejo graça e isso me desgosta tanto quanto marcas de batom vermelho nos dentes ou em filtro de cigarro.

Dependurado e enormemente brilhante e infeliz, um piercing denunciava o descaso com aquele umbigo. Não sei quem foi que disseminou essa moda. Não os piercings, mas eles no umbigo. Só de limpar com cotonete, quase morro. Já não sabia mais se era tão linda.

Ela virou e balançou a peça em movimentos rápidos e consecutivos. E ele deu a volta em torno da base antes de repousar novamente na voltinha que faz quando a pele sai do umbigo e retoma a trajetória plana e tênue até se esconder na borda desfiada do jeans. Plácida.

Acontece.

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Sarney, o imbatível

— Mas o doutô deu pru país a maior inflação de toda a história mundial.

— Veja bem. Em tempos difíceis, quando algo sai em desacordo com o planejado, o gatilho sempre resolveu. Foi assim com o gatilho salarial, lembra?

— É, 86 foi um ano incomum, mesmo. Coisas que nunca tinha visto aconteceram bem pertinho dos olhos. O Haley, tô falando do Haley.

— Fui amigo do Glauber. O Glauber era o cineasta do povo. Morreu, mas nunca torci pela morte de ninguém.

— Pobre Tancredo.

— Já reparou como o mês de abril congrega datas importantes para a Pátria? 21 tem o Tiradentes, Brasília e o Tancredo. E 22, o descobrimento.

— Todas perdas, senador/

— Presidente. Agora sou presidente do Senado.

— Terceira vez.

— Detalhe, meu filho. Agora ande, que democracia é coisa séria.

Para entender melhor, clique aqui.

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Crônicos & Agudos é criação de Danilo Sanches. Além desse, o autor escreve para outro blog.
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